YUK HUI — COSMOTÉCNICA COMO COSMOPOLÍTICA

O fim da globalização unilateral e a chegada do Antropoceno nos obrigam a falar da cosmopolítica. Esses dois fatores se correlacionam e correspondem a dois sentidos diferentes da palavra “cosmopolítica”: como regime comercial e como política da natureza.

Em primeiro lugar, estamos testemunhando os últimos momentos da globalização unilateral. Até agora, a assim chamada “globalização” tem sido em sua maior parte um processo que emana de um só lado e traz consigo a universalização de epistemologias particulares e, através de meios tecnoeconômicos, a elevação de uma visão de mundo regional ao status de metafísica supostamente global. Sabemos que essa globalização unilateral chegou ao fim graças à leitura equivocada que se atribuiu aos ataques do 11 de Setembro, vistos como um ataque do Outro contra o Ocidente. Na verdade, o 11 de Setembro foi um evento “autoimune”, interno ao bloco Atlântico, no qual suas próprias células anticomunistas, adormecidas desde o fim da Guerra Fria, se voltaram contra seu hospedeiro.[1] Ainda assim, as imagens espetaculares do evento forneceram uma espécie de teste de Rorschach em que os representantes da globalização puderam projetar suas inseguranças crescentes quanto a serem deixados ilhados entre a antiga configuração e a nova – um exemplo do que Hegel chamou de “consciência infeliz”.[2]

A consciência infeliz de Peter Thiel evoca uma época de glória comercial a que se renunciou com o fim da globalização unilateral e aspira a um futurismo transumanista baseado na aceleração tecnológica de todas as escalas cósmicas. Isso leva a uma redefinição do Estado-nação soberano como resultado da competição tecnológica global. Precisamos começar a imaginar uma nova política que não seja apenas mais uma continuação desse mesmo tipo de geopolítica com uma ligeira mudança nas configurações do poder – ou seja, uma geopolítica cuja diferença estaria no fato de que o papel de superpotência seria desempenhado pela China ou pela Rússia em vez dos Estados Unidos. Precisamos de uma nova linguagem de cosmopolítica para que possamos formular uma nova ordem mundial que vá além de uma única hegemonia.

Em segundo lugar, a espécie humana se encontra diante da crise do Antropoceno. A Terra e o cosmos foram transformados em um imenso sistema tecnológico – o ápice da ruptura epistemológica e metodológica a que chamamos de modernidade. A perda do cosmos é o fim da metafísica no sentido de que já não somos capazes de apreender o que quer que tenha sido deixado para trás pela perfeição da ciência e da tecnologia ou que esteja além dela.[3] Quando historiadores como Rémi Brague e Alexandre Koyré escrevem sobre o fim do cosmos na Europa dos séculos XVII e XVIII,4 suas afirmações devem ser lidas em nosso contexto antropocênico como um convite ao desenvolvimento da cosmopolítica não apenas no sentido de um cosmopolitismo, mas também no de uma política do cosmos.[5] Em resposta a esse convite, gostaria de sugerir que elucidar a questão da cosmotécnica é necessário para que o desenvolvimento de uma cosmopolítica desse tipo seja possível. Venho desenvolvendo o conceito de cosmotécnica a fim de reapresentar a questão da tecnologia desfazendo certas traduções que foram motivadas pela busca de equivalências ao longo da modernização. Essa problematização pode ser apresentada nos termos de uma antinomia kantiana:

Tese: a tecnologia, como formulada por alguns antropólogos e filósofos, é um universo antropológico entendido como a exteriorização da memória e a superação da dependência dos órgãos. Antítese: a tecnologia não é antropologicamente universal; seu funcionamento é assegurado e limitado por cosmologias particulares que vão além da mera funcionalidade e da utilidade. Assim, não há uma tecnologia única, mas uma multiplicidade de cosmotécnicas.

A fim de explorar essa relação entre cosmotécnica e cosmopolítica, divido este capítulo em três partes. Primeiro, demonstrarei como o conceito kantiano de cosmopolítica está enraizado no conceito de natureza em Kant. Na segunda parte, situarei o “multinaturalismo” proposto pela “virada ontológica” na antropologia como uma cosmopolítica diferente, a qual, em contraste com a busca kantiana pelo universal, sugere certo relativismo como condição propiciadora de coexistência. Na terceira parte, tentarei mostrar por que temos de adotar o avanço da cosmologia em direção à cosmoética como política por vir.

Diagrama usado por Johannes Kepler para estabelecer as leis do movimento planetário © Wikimedia Commons.

1 — COSMOPOLITISMO: ENTRE A NATUREZA E A TECNOLOGIA

A principal dificuldade de toda cosmopolítica está na reconciliação entre o universal e o particular. O universal tende a contemplar os particulares do alto, da mesma forma como Kant observava a Revolução Francesa – como um espectador que assiste do camarote do teatro a uma peça violenta. A universalidade é a visão de um espectador, nunca a de um ator. Kant escreveu em Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita:

ele não tem outra saída senão tentar descobrir, neste curso absurdo das coisas humanas, um propósito da natureza que possibilite todavia uma história segundo um determinado plano da natureza para criaturas que procedem sem um plano próprio. […] Assim ela [a Natureza] gerou um Kepler, que, de uma maneira inesperada, submeteu as excêntricas órbitas dos planetas a leis determinadas; e um Newton, que explicou essas leis por uma causa natural universal.[6]

Kant sustenta ao longo de seus escritos políticos que essa relação entre natureza e cosmopolítica é necessária.[7] Se Kant vê a constituição republicana e a paz perpétua como formas políticas que talvez possam trazer à tona uma história universal da espécie humana, isso se deve à sua concepção de que um progresso desse tipo também é um progresso da razão, o telos da natureza. Esse progresso em direção a um objetivo final (mais especificamente, a história universal e a constituição política perfeita) é a “realização de um plano oculto da natureza” (Vollziehung eines verborgenen Plans der Natur). Mas o que significa dizer que a natureza tem um plano oculto? E por que a concretização da cosmopolítica é a teleologia da natureza?

Autores como Hannah Arendt e Eckart Förster, entre outros, sugerem que a filosofia política de Kant gravita em torno de seu conceito de natureza.[8] Arendt propõe uma justaposição no que se refere à paz perpétua de Kant: de um lado, Besuchsrecht, o direito de visitar países estrangeiros e o direito à hospitalidade; de outro, a natureza, “essa grande artista, como a eventual garantia à ‘paz perpétua’”.[9] Se depois de 1789 Kant é ainda mais consistente em sua afirmação da cosmopolítica como teleologia do futuro, isso se deve ao desenvolvimento do conceito de auto-organização, que desempenha um papel central no segundo livro de Crítica da faculdade do julgar – no qual são estabelecidas as duas categorias importantes de relação, quais sejam, comunidade (Gemeinschaft) e reciprocidade da ação (Wechselwirkung).

Consideremos o exemplo da árvore que Kant dá no §64 da Crítica da faculdade do julgar. Primeiro, a árvore se reproduz de acordo com seu gênero – produz outra árvore. Depois, a árvore produz a si mesma como indivíduo; ela absorve a energia do ambiente e a transforma em nutrientes que garantem a vida. Finalmente, partes diferentes da árvore estabelecem relações recíprocas umas com as outras e, assim, constituem o todo; como Kant escreve, a “a conservação de uma parte depende da conservação da outra, e vice-versa”.[10] Nessa totalidade, uma parte é sempre limitada pelo todo, e isso também é válido para o entendimento de Kant sobre a integridade da cosmopolítica: “um sistema de todos os Estados que se arriscam a prejudicar uns aos outros”.[11] A natureza não é algo que possa ser julgado de um ponto de vista em particular, assim como a Revolução Francesa não poderia ser julgada de acordo com seus participantes. Pelo contrário, a natureza só pode ser compreendida como um todo complexo, e a espécie humana, parte desse todo, acabará por progredir rumo à história universal que coincide com a teleologia da natureza.[12]

Nossa intenção aqui é mostrar que Kant desenvolve seu pensamento em direção ao universalismo e que seu conceito de relação entre a cosmopolítica e o propósito da natureza está situado em um momento peculiar da história: o encantamento e o desencantamento simultâneos da natureza. Por um lado, Kant reconhece a importância do conceito de orgânico para a filosofia; descobertas nas ciências naturais lhe permitiram conectar o cosmos com a moral, como indicado pela famosa analogia exposta ao final da Crítica da razão prática: “Duas coisas enchem o íntimo de admiração e veneração sempre nova e crescente, quanto mais frequente e insistentemente a reflexão ocupa-se com elas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim”.[13] Howard Caygill faz uma afirmação ainda mais categórica, sob o argumento de que a analogia aponta para uma “fisiologia kantiana da alma e do cosmos” que une o “dentro de mim” (a liberdade) e o “acima de mim”.[14] Por outro lado, como vimos na citação que Kant faz de Kepler e de Newton em Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, a afirmação da “história universal” e os avanços da ciência e da tecnologia no século XVIII levaram ao que Rémi Brague chama de “morte do cosmos”:

A nova astronomia, dando continuidade a Copérnico e seus sucessores, teve consequências para o ponto de vista moderno do mundo […]. Pensadores medievais e da Antiguidade apresentaram um esquema sincrônico da estrutura do mundo físico que apagava os rastros de sua origem; os modernos, por outro lado, lembraram do passado e, além disso, ofereceram uma visão diacrônica da astronomia – como se a evolução das ideias sobre o cosmos fosse ainda mais importante do que a verdade sobre ele […]. Seria ainda possível falar de cosmologia? Parece que o Ocidente perdeu uma cosmologia com o fim do mundo de Aristóteles e de Ptolomeu, um fim atribuível a Copérnico, Galileu e Newton. O “mundo”, a partir de então, já não formava um todo.[15]

Novas descobertas nas ciências naturais graças à invenção do telescópio e dos microscópios expuseram os seres humanos a magnitudes que não podiam ser anteriormente compreendidas e levaram a uma nova relação com “todo o leque da natureza” (in dem ganzen Umfang der Natur).[16] Diane Morgan, estudiosa de Kant, sugere que a natureza perdeu o caráter antropomórfico quando foi confrontada com os “mundos para além de mundos” revelados pela tecnologia, já que a relação entre humanos e natureza foi, então, virada do avesso, com os humanos agora colocados diante do universo “imensamente grande”.[17] Como indicamos antes, no entanto, há um momento dúplice que merece nossa atenção: tanto o momento do encantamento quanto o do desencantamento da natureza que, causado pelas ciências naturais, levou a uma secularização do cosmos.

Para além da revelação da natureza e de sua teleologia através de instrumentos técnicos, a tecnologia também assume um papel decisivo quando Kant afirma em sua filosofia política que a comunicação é a condição de realização do todo organicista. Arendt explicitou o papel do sensus communis na filosofia kantiana como questão tanto de comunidade quanto de consenso.[18] Mas tal sensus communis somente é alcançado por meio de tecnologias especiais, e é com base nisso que devemos problematizar qualquer discurso ingênuo que enxergue o comum como algo já dado ou que preceda a tecnologia. A era do Iluminismo, como destacado por Arendt (e também por Bernard Stiegler), é a do “uso público da razão individual”, e esse exercício da razão se manifesta na liberdade de expressão e de imprensa, que necessariamente envolvem as tecnologias de impressão. Em um nível internacional, Kant escreve em À paz perpétua que “em um comércio de diferentes povos, pelo que os povos foram levados pela primeira vez a uma relação pacífica uns com os outros e, assim, à compreensão da comunidade e da relação pacífica uns com os outros, mesmo com os mais distantes” e, mais adiante, acrescenta que “é o espírito comercial, que não pode subsistir juntamente com a guerra e que mais cedo ou mais tarde se apodera de cada povo”.[19]

2 — “VIRADA ONTOLÓGICA” COMO COSMOPOLÍTICA

A reiteração do cosmopolitismo de Kant é uma tentativa de demonstrar o papel da natureza na filosofia política kantiana. De algum modo, Kant admite uma única natureza que a razão nos impele a reconhecer como racional; a racionalidade corresponde à universalidade teleológica organicista ostensivamente concretizada na constituição tanto da moralidade quanto do Estado. Esse encantamento da natureza é acompanhado por um desencantamento da natureza guiado pela mecanização imposta pela Revolução Industrial. A “morte do cosmos” de Brague, empreendida pela modernidade europeia e por sua globalização da tecnologia moderna, necessariamente forma uma das condições para que hoje reflitamos sobre a cosmopolítica, uma vez que ilustra a ineficácia de uma metáfora biológica para o cosmopolitismo. Se começamos por Kant, e não por discussões mais recentes sobre tal conceito – como o cosmopolitismo sem raízes de Martha Nussbaum, o patriotismo constitucional de Habermas ou o patriotismo cosmopolita de Anthony Appiah –,[20] isso se deve ao fato de que queremos reconsiderar o cosmopolitismo ao examinar suas relações com a natureza e com a tecnologia. Na verdade, o cosmopolitismo enraizado de Appiah será relevante para nossa discussão mais adiante. Ele sustenta a ideia de que o cosmopolitismo nega a importância de afiliações e de lealdades individuais; o que significa que tal visão é necessária para que se considere a cosmopolítica a partir do ponto de vista da localidade. É em função desse aspecto crucial que eu gostaria de articular a ideia do “multinaturalismo”, recentemente proposta por antropólogos que buscam apresentar um novo modo de pensar o cosmopolitismo.

A “virada ontológica” na antropologia é um movimento associado a antropólogos como Philippe Descola, Eduardo Viveiros de Castro, Bruno Latour e Tim Ingold, e, antes deles, a Roy Wagner e Marilyn Strathern, entre outros.[21] Essa virada ontológica é uma resposta direta à crise da modernidade que, de modo geral, se expressa em termos de uma crise ecológica que, agora, está intimamente ligada ao Antropoceno. O movimento da virada ontológica é uma tentativa de levar diferentes ontologias em diferentes culturas a sério (devemos ter em mente que saber onde diferentes ontologias estão não é o mesmo que levá-las a sério). Descola convence ao esboçar quatro ontologias principais: o naturalismo, o animismo, o totemismo e o analogismo.[22] O moderno é caracterizado pelo que o autor chama de “naturalismo”, o que significa uma oposição entre cultura e natureza e entre a dominância da primeira em relação à segunda. Descola sugere que devemos ir além dessa oposição e reconhecer que a natureza não está mais em oposição ou em situação de inferioridade com relação à cultura. Em vez disso, podemos ver os diferentes papéis que a natureza exerce nas diferentes ontologias; no animismo, por exemplo, o papel da natureza se baseia na continuidade da espiritualidade, apesar do caráter descontínuo da fisicalidade.

Em Par-delà Nature et culture [Para além da natureza e da cultura], Descola propõe um pluralismo ontológico que é irredutível ao socioconstrutivismo. Ele sugere que o reconhecimento dessas diferenças ontológicas pode servir como antídoto à dominância que o naturalismo vem exercendo desde o advento da modernidade europeia. Mas será que esse enfoque na natureza (ou no cosmos, poderíamos dizer) com vistas à oposição ao naturalismo europeu pode de fato reviver o encantamento da natureza, desta vez em nome de um conhecimento nativo? Esse parece ser um problema latente nesse movimento: muitos antropólogos associados com a virada ontológica voltaram suas atenções para a questão da natureza e da política do não humano (em linhas gerais, animais, plantas, minerais, os espíritos e os mortos). Isso fica evidente quando lembramos que Descola propôs que o nome de sua disciplina fosse “antropologia da natureza”. Essa tendência também sugere que a questão da técnica não é tratada de modo suficiente pelo movimento da virada ontológica. Por exemplo, Descola fala com frequência sobre a prática – o que pode indicar seu desejo (louvável) de evitar uma oposição entre natureza e técnica –, mas, ao fazê-lo, ele também obscurece a questão da tecnologia. Descola mostra que o analogismo, e não o naturalismo, teve uma presença significativa na Europa durante a Renascença; se esse é de fato o caso, a “virada” que ocorreu durante a modernidade europeia parece ter resultado em uma ontologia e em uma epistemologia completamente diferentes. Se o naturalismo foi bem-sucedido na dominação do pensamento moderno, é porque uma imaginação cosmológica do gênero é compatível com seu desenvolvimento tecno-lógico: a natureza deve ser dominada para o bem do homem e, de acordo com as próprias regras da natureza, pode efetivamente sê-lo. Ou, colocado de outra maneira: a natureza é considerada a fonte de contingências devido à sua “fragilidade conceitual” e, por isso, precisa ser subjugada pela lógica.

Essas oposições entre natureza e técnica, mitologia e razão, fazem emergir várias ilusões que se alinham a um dos extremos. De um lado, racionalistas ou “progressistas” fazem esforços histéricos a fim de preservar seu monoteísmo mesmo depois de terem assassinado Deus, acreditando de bom grado que o processo mundial descartará as diferenças e a diversidade e levará a uma “teodiceia”. De outro, estão os intelectuais de esquerda que sentem a necessidade de exaltar a ontologia ou a biologia nativas como uma saída para a modernidade. Recentemente, um pensador revolucionário francês descreveu a situação da seguinte maneira:

Uma coisa engraçada de se ver nos dias de hoje é como todos esses absurdos esquerdistas modernos – todos incapazes de enxergar qualquer coisa que seja, todos perdidos em si mesmos, todos se sentindo tão mal, todos tentando desesperadamente existir e encontrar sua existência nos olhos do Outro –, como todas essas pessoas estão se lançando no “selvagem”, no “indígena” e no “tradicional” como forma de escapar e de não encararem a si mesmos. Não falo aqui de adotar uma postura crítica contra a própria “branquitude”, contra o próprio “modernismo”. Falo da capacidade de olhar para dentro [transpercer] de si mesmo.

Minha recusa dos dois extremos de que falei não vem de nenhum “politicamente correto” pós-colonial, mas de uma tentativa de ir além da crítica pós-colonialista. (Em outro texto, apontei o fracasso do pós-colonialismo em lidar com a questão da tecnologia.)[23] Defendo a tese de que um pluralismo ontológico só poderá ser concretizado após uma reflexão sobre a questão da tecnologia e da política ligada a ela. Kant tinha consciência da importância da tecnologia quando fez seu comentário sobre o comércio como forma de comunicação; ele não prestou muita atenção, no entanto, na diferença tecnológica que acabou por levar à modernização planetária e, agora, à computação planetária, já que o que estava em jogo para o filósofo era a questão do todo que absorve cada diferença. Kant criticava os hóspedes mal-educados, os colonizadores gananciosos que trouxeram com eles “a opressão dos nativos, a sublevação de diversos Estados para guerras mais extensas, o flagelo da fome, revolta, deslealdade e a ladainha de todos os males que oprimem o gênero humano”. Ao comentar as estratégias de defesa da China e do Japão, Kant dizia que ambos os países:

tendo feito tratativas com tais hóspedes, permitiram sabiamente o acesso, mas não a entrada; este acesso somente a um único povo europeu, os holandeses, que, contudo, eles excluíram, enquanto prisioneiros, da comunidade dos nativos.[24]

Quando Kant escreveu isso, em 1795, ainda era muito cedo para que previsse a modernização e a colonização que se desenrolariam no Japão e na China. Se essa fase da globalização pôde se concretizar, foi devido aos avanços tecnológicos do Ocidente, que permitiram a subjugação dos japoneses, dos chineses e de outras civilizações asiáticas. A natureza, garantia da paz perpétua, não nos levou tanto assim para a paz perpétua, mas para guerras e mais guerras. Para que se faça uma defesa do cosmopolitismo hoje, penso que devemos reler o cosmopolitismo de Kant de acordo com o processo de modernização e revisitar as questões da natureza e da tecnologia de uma maneira diferente. A chegada da tecnologia moderna a países não europeus ao longo dos últimos séculos gerou uma transformação que era impensável para observadores europeus. A restauração de “naturezas nativas” precisa primeiro ser questionada – não porque elas não existam, mas porque estão situadas em uma nova época e são transformadas de tal modo que dificilmente haverá como voltar atrás e restaurá-las.[25]

Retomemos o que foi dito antes sobre a virada ontológica. A cosmologia é essencial para o conceito de “natureza” e de “ontologia” dos antropólogos, já que essa “natureza” é definida de acordo com diferentes “ecologias de relações”, nas quais observamos diferentes constelações de relações, como o parentesco entre mulheres e vegetais ou a fraternidade entre caçadores e animais. Essas multiontologias se expressam como multinaturezas; as quatro ontologias de Descola, por exemplo, correspondem a diferentes visões cosmológicas. Creio que seja muito difícil, senão impossível, que a modernidade seja superada sem que se enfrente de maneira direta a questão da tecnologia – o que tem se tornado cada vez mais urgente depois do fim da globalização unilateral. Para isso, precisamos reformular a questão da cosmopolítica em relação à cosmotécnica.

Um diagrama da torre do relógio de Su Song (1020–1101). O projeto original incluía esfera armilar, roda hidráulica, mecanismo de escape e transmissão em cadeia.

3 — COSMOTÉCNICA COMO COSMOPOLÍTICA

Proponho ir além da noção de cosmologia; em vez disso, seria mais produtivo abordarmos o que chamo de cosmotécnica. Aqui vai uma definição preliminar: cosmotécnica é a unificação do cosmos e da moral por meio das atividades técnicas, sejam elas da criação de produtos ou de obras de arte. Não há apenas uma ou duas técnicas, mas muitas cosmotécnicas. Que tipo de moralidade, qual cosmos e a quem ele pertence e como unificar isso tudo variam de uma cultura para a outra de acordo com dinâmicas diferentes. Estou convencido de que, a fim de confrontar a crise diante da qual nos encontramos – mais precisamente, o Antropoceno, a intrusão de Gaia (Latour e Stengers) ou o “Entropoceno” (Stiegler), todas essas noções apresentadas como o futuro inevitável da humanidade –, precisamos rearticular a questão da tecnologia, de modo a vislumbrar a existência de uma bifurcação de futuros tecnológicos sob a concepção de cosmotécnicas diferentes. Procurei demonstrar essa possibilidade em The Question Concerning Technology in China: An Essay in Cosmotechnics [A questão da técnica na China: um ensaio sobre a cosmotécnica]. Como se pode perceber pelo título, trata-se de uma tentativa de responder ao famoso curso de Heidegger de 1949, “A questão da técnica”. Defendo que, para repensarmos o projeto de superação da modernidade, devemos desfazer e refazer as traduções de technē, physis, metaphysika (não como conceitos meramente independentes, mas como conceitos inseridos em sistemas); só ao reconhecer essa diferença que conseguiremos alcançar a possibilidade de uma causa comum para a filosofia.

Por que acredito, então, que precisamos nos voltar para a cosmotécnica? Já faz muito tempo que operamos com um conceito muito estrito – na verdade, estrito demais – de técnica. Ao acompanharmos o ensaio de Heidegger, podemos distinguir duas noções de tal conceito. Primeiro, temos a noção grega de technē, que Heidegger desenvolve por meio de sua leitura dos gregos antigos, notadamente os pré-socráticos – mais precisamente, os três pensadores “iniciais” (anfängliche), Parmênides, Heráclito e Anaximandro.[26] Em seu curso de 1949, Heidegger propõe uma distinção entre a essência da technē grega e a tecnologia moderna (moderne Technik).

Se a essência da technē é a poiesis, ou produção (Hervorbringen), então a tecnologia moderna, um produto da modernidade europeia, deixa de possuir a mesma essência da technē e se torna um aparato de “composição” (Gestell), no sentido de que todos os seres se tornam disponíveis (Bestand) para isso. Heidegger não inclui essas duas essências como técnicas, mas também não dá espaço para outras técnicas – como se só houvesse uma única e homogênea Machenschaft [maquinação] depois da technē grega, uma técnica calculável, internacional e até planetária. É espantoso que encontremos nos chamados Schwarze Hefte [Cadernos negros] de Heidegger – dos quais foram publicados até agora quatro volumes – uma anotação deste tipo: “Se o comunismo chegasse ao poder na China, seria possível admitir que esse seria o único modo pelo qual os chineses poderiam se ver ‘desimpedidos’ para a tecnologia. Que processo é esse?”.[27] Heidegger insinua duas coisas aqui: primeiro, que a tecnologia é internacional (não universal); segundo, que os chineses não tiveram capacidade nenhuma de resistir à tecnologia depois que o comunismo tomou o poder no país. Esse veredito antecipa a globalização tecnológica como uma forma de neocolonização que impõe sua racionalidade via instrumentalidade, como o que observamos nas políticas transumanistas e neorreacionárias.

Minha tentativa de ir além do discurso de Heidegger quanto à tecnologia tem como base, sobretudo, duas motivações: 1) o desejo de responder à virada ontológica na antropologia que pretende lidar com o problema da modernidade com uma proposta de pluralismo ontológico; e 2) o desejo de atualizar o discurso insuficiente que é largamente associado à crítica de Heidegger à tecnologia. Propus que recolocássemos a questão da técnica como uma variedade de cosmotécnica, e não como technē ou tecnologia moderna. Em minha pesquisa, usei a China como laboratório para minha tese e tentei reconstruir uma genealogia do pensamento tecnológico chinês. Essa tarefa, no entanto, não se limita à China, já que a ideia central é a de que todas as culturas não europeias deveriam sistematizar as próprias cosmotécnicas e as histórias dessas cosmotécnicas. O pensamento cosmotécnico chinês consiste em uma longa história de discursos intelectuais sobre a unidade e a relação entre chi e tao. A união do chi e do tao também é a união da moral e do cósmico, já que a metafísica chinesa é, em essência, uma cosmologia moral ou uma metafísica moral, como foi demonstrado pelo filósofo do novo confucionismo Mou Tsung-San. Mou sugere que, se em Kant podemos encontrar uma metafísica da moral, se trata no máximo de uma exploração metafísica da moral, não uma metafísica moral, uma vez que esta só pode ter início com a moral. A demarcação que Mou traça entre a filosofia chinesa e a ocidental fundamenta sua convicção de que a filosofia chinesa reconhece e cultiva a intuição intelectual que Kant associa à apreensão do “númeno”, mesmo que Kant descarte a possibilidade de que seres humanos possam vir a possuir esse tipo de intuição. Para Mou, a moral emerge da experiência da infinitude do cosmos, o que exige a infinitização como condição de possibilidade da finitude do Dasein.[28]

Tao não é um objeto. Não é um conceito. Não é uma différance. No Tseu-Hi de Yi Zhuan (易傳‧繫辭), Tao é tido apenas como “acima das formas”, enquanto chi é o que está “abaixo das formas”. É digno de nota que xin er shang xue (o estudo do que está acima das formas) seja a expressão usada para traduzir “metafísica” (uma das equivalências que precisa ser desfeita). Chi é algo que ocupa espaço, como podemos notar pela leitura de um dicionário etimológico e também por sua representação gráfica (氣) – quatro bocas ou recipientes e, no meio deles, um cão que guarda utensílios de cozinha. O chi apresenta sentidos variados em doutrinas diferentes; no confucionismo clássico, por exemplo, há Li chi (禮器), no qual o chi é essencial para o Li (um rito) – que, por sua vez, não é apenas uma cerimônia, mas sobretudo a busca por união entre o ser humano e os céus. Para os nossos propósitos, basta dizer que tao pertence ao númeno de acordo com a distinção kantiana, enquanto chi se relaciona ao fenômeno. Mas é possível infinitizar o chi de modo a infinitizar o eu e adentrar o númeno – essa é a questão da arte.

Para que se entenda melhor o que quero dizer com isso, podemos nos voltar para a história do açougueiro Pao Ding, tal como contada no Zhuangzi [Livro de Chuang-Tzu]. É preciso ter em mente, no entanto, que esse é um exemplo escrito na Antiguidade e que precisamos de uma visão histórica muito mais ampla para compreendê-lo.

Pao Ding é ótimo em esquartejar vacas. Ele afirma que a chave para ser um bom açougueiro não está no domínio de certas técnicas, mas na compreensão do tao. Em resposta a uma pergunta feita pelo duque Wen Huei sobre o tao do esquartejamento bovino, Pao Ding alega que ter uma boa faca não é necessariamente o bastante; o mais importante é entender o tao da vaca, de modo a usar a lâmina não para despedaçar ossos e tendões, mas, antes, para fazê-la correr ao longo deles e adentrar os espaços entre eles. Aqui, o sentido literal de tao – “caminho” ou “trajeto” – se confunde com seu sentido metafísico:

O que eu amo é o tao, que é muito mais esplêndido do que a minha técnica. Quando comecei a trinchar bois, não via nada além do boi inteiro. Três anos mais tarde, já não via o boi inteiro, mas partes dele. Agora trabalho por intuição e não olho para ele com os olhos. Meus órgãos visuais param de funcionar enquanto minha intuição segue o próprio caminho. Em harmonia com o princípio do céu (natureza), corto ao largo das ligações e trespasso as grandes cavidades com a faca. Porque sigo a estrutura natural do boi, nunca encosto em veias ou tendões, muito menos em ossos grandes![29]

Assim, Pao Ding conclui que um bom açougueiro não confia nos objetos técnicos que estão à disposição, mas no tao, já que o tao é mais essencial do que o chi (a ferramenta). Pao Ding acrescenta que um bom açougueiro precisa substituir a faca a cada ano, já que só corta tendões, enquanto um mau açougueiro precisa substituí-la a cada mês, pois usa a lâmina para cortar ossos. Pao Ding – um açougueiro excelente –, por sua vez, não precisou trocar de faca por dezenove anos, e a sua parece ter acabado de sair da pedra de amolar. Quando se vê diante de uma dificuldade, Pao Ding detém a faca e tateia em busca do lugar certo para que possa avançar.

O duque Wen Huei, que havia feito a pergunta, responde que “agora, depois de ter ouvido Pao Ding falar, aprendi a viver”; e, de fato, essa história está incluída na seção intitulada “Maestria no viver”. É, portanto, a questão do “viver”, mais do que a da técnica, que está no centro da narrativa. Se há um conceito de “técnica” aqui, ele está separado do objeto técnico: ainda que o objeto técnico não seja desprovido de importância, não se pode buscar a perfeição da técnica pelo aperfeiçoamento de uma ferramenta ou de uma habilidade, já que a perfeição só pode ser alcançada pelo tao. A faca de Pao Ding nunca corta tendões ou ossos; em vez disso, ela busca pelos vãos e os percorre com facilidade. E, ao fazê-lo, desempenha a função de destrinchar uma vaca sem se colocar em risco – isto é, sem que a faca perca o fio e seja substituída. Ela, assim, se realiza inteiramente como faca.

O que eu disse até agora não é suficiente para a formulação de um programa, já que se trata apenas de uma explicação quanto à motivação por trás de um projeto muito mais amplo que tentei iniciar em The Question Concerning Technology in China. Para além disso, também precisamos prestar atenção ao desenvolvimento histórico do relacionamento entre chi e tao. Mais especificamente, a busca pela união entre chi e tao passou por diferentes fases ao longo da história chinesa, em resposta a crises históricas (o declínio da Dinastia Chou, a expansão do budismo, a modernização etc.); foi, ainda, amplamente discutida depois das Guerras do Ópio, em meados do século XIX, mas permaneceu como questão resolvida em função de um conhecimento muito limitado da tecnologia na época e de uma avidez por encontrar equivalências entre a China e o Ocidente. Tentei reler a história da filosofia chinesa não apenas como uma história intelectual, mas também através das lentes da episteme chi–tao, que visa reconstruir uma tradição de pensamento tecnológico na China. Como enfatizei em outro texto, essa questão não é de modo algum exclusivamente chinesa.[30] Pelo contrário, todas as culturas devem refletir sobre a questão da cosmotécnica a fim de que surja uma nova cosmopolítica, uma vez que, para superarmos a modernidade sem recair em guerras e no fascismo, parece-me necessário nos reapropriar da tecnologia moderna através da estrutura renovada de uma cosmotécnica que consista em diferentes epistemologias e epistemes. Por isso, este não é um projeto de substancialização da tradição, como no caso de tradicionalistas como René Guénon ou Aleksandr Dugin; o objetivo aqui não é recusar a tecnologia moderna, mas analisar a possibilidade de futuros tecnológicos diferentes. O Antropoceno é a planetarização das composições (Gestell), e a crítica de Heidegger à tecnologia é hoje mais significativa do que nunca. A globalização unilateral que chegou ao fim está dando lugar a uma competição de acelerações tecnológicas e às tentações da guerra, da singularidade tecnológica e dos sonhos (ou delírios) transumanistas. O Antropoceno é um eixo de tempo global e de sincronização que tem como base essa visão do progresso tecnológico rumo à singularidade. Recolocar a questão da tecnologia é recusar esse futuro tecnológico homogêneo que nos é apresentado como a única opção.

O autor gostaria de agradecer a Pieter Lemmens e a Kirill Chepurin pelos comentários feitos sobre as primeiras versões deste ensaio.

Notas de Rodapé

[1] Sobre o caráter autoimune dos ataques do 11 de Setembro, cf. Giovanna Borradori, Filosofia em tempo de terror – Diálogos com Habermas e Derrida, trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Zahar, 2004; e Chalmers Johnson, Blowback: The Costs and Consequences of American Empire. New York: Holt, 2004.

[2] Ver capítulo 2, “Sobre a consciência infeliz dos neorreacionários”, p. 49.

[3] Martin Heidegger, Der Satz vom Grund. Frankfurt am Main: Klostermann, 1997.

[4] Cf. Rémi Brague, The Wisdom of the World: The Human Experience of the Universe in Western Thought. Chicago: University of Chicago Press, 2003; e Alexandre Koyré, Do mundo fechado ao universo infinito [1957], trad. Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

[5] Quanto a este tema, cf. Isabelle Stengers, Cosmopolitics i e ii. Minnea-polis: University of Minnesota Press, 2010–11.

[6] Immanuel Kant, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita [1784], trad. Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, pp. 4–5.

[7] Cf. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita [1784] e À paz perpétua [1795] e, entre ambos, Crítica da faculdade do julgar [1790], uma das fontes principais da filosofia política inexistente de Kant, de acordo com Hannah Arendt em Lições sobre a filosofia política de Kant [1982], trad. André Duarte de Macedo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.

[8] H. Arendt, op. cit., e Eckart Förster, “The Hidden Plan of Nature”, in Amelie Oksenberg Rorty, James Schmidt (orgs.), Kant’s Idea for a Universal History with a Cosmopolitan Aim: A Critical Guide. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, pp. 187–99.

[9] H. Arendt, op. cit., p. 24.

[10] I. Kant, Crítica da faculdade do julgar [1790], trad. Fernando Costa Mattos. Rio de Janeiro: Vozes, 2016, p. 267.

[11] Como citado em H. Arendt, op. cit., p. 69.

[12] De forma mais concreta, aqui Kant está interessado na questão da organização, que encontra sua potência máxima no origanismo. A concepção de Kant deve ser diferenciada, aqui, do espinosismo (panteísmo), do teísmo e do hilozoísmo, que ele rejeita de maneira explícita no §72 da Crítica da faculdade do julgar.

[13] I. Kant, Crítica da razão prática [1788], trad. Valerio Rohden. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016, p. 255.

[14] Howard Caygill, “Soul and Cosmos in Kant: A Commentary on ‘Two Things Fill the Mind…’”, in Diane Morgan e Gary Banham (orgs.), Cosmopolitics and the Emergence of a Future. New York: Palgrave Macmillan, 2007, p. 215. Caygill rastreia a relação entre o cosmos e a moral nas analogias de Kant (o belo como símbolo de moral, por exemplo) e a influência da teoria da irritabilidade de Brown e de Haller no Opus Postumum, confirmando a estrutura organicista presente em ambas.

[15] R. Brague, op. cit., pp. 188–89.

[16] I. Kant, Universal Natural History and the Theory of the Heavens [1755], org. e trad. S. Jaki. Edimburgo: Scottish Academic Press, 1981, p. 164, apud Diana Morgan, “Introduction: Parts and Wholes – Kant, Communications, Communities and Cosmopolitics”, in D. Morgan e G. Banham (orgs.), op. cit., p. 8.

[17] I. Kant, Crítica da razão prática, op. cit., p. 255.

[18] H. Arendt, op. cit., pp. 90–92.

[19] I. Kant, À paz perpétua: um projeto filosófico [1795], trad. Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2011 (e-book).

[20] Não será possível abordar, neste texto, as diferentes pontos de vista sobre cosmopolitismo, mas, para uma visão geral, cf. Angela Taraborrelli, Contemporary Cosmopolitanism, trad. Ian McGilvray. London: Bloomsbury, 2015.

[21] Sobre essa trajetória intelectual, cf. Martin Holbraad e Morten Axel Pedersen, The Ontological Turn: An Anthropological Exposition. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.

[22] Philippe Descola, Par-délà Nature et culture. Paris: Gallimard, 2005, p. 122.

[23] Y. Hui, The Question Concerning Technology in China: An Essay in Cosmotechnics. Falmouth: Urbanomic, 2016, §28.

[24] Ibid.

[25] Quanto a este assunto, teremos que deixar para confrontar Viveiros de Castro em outra oportunidade, já que para ele o perspectivismo ameríndio é tudo, menos obsoleto.

[26] Para que possamos entender melhor o conceito heideggeriano de technē, devemos voltar a suas primeiras obras. No curso Introdução à metafísica, de 1935, Heidegger tenta reconciliar Parmênides, o filósofo do ser, com Heráclito, o filósofo do devir, por meio da interpretação de um verso da Antígona de Sófocles. Sua reflexão se concentra em uma descrição do Dasein humano como to deinataton, o mais infamiliar dos infamiliares (das Unheimlichste des Unheimlichen). Segundo Heidegger, o “infamiliar” tem dois sentidos. Em um deles, refere-se a uma violência (Gewalttätigkeit) associada à technē; aqui, technē não é nem arte nem técnica no sentido moderno, mas saber – uma forma de saber que pode fazer o Ser começar a funcionar nos seres. No segundo sentido, o “infamiliar” se refere a poderes avassaladores (Überwaltigend), como os do mar e da terra. Esses poderes se manifestam na palavra dikē, tradicionalmente traduzida como “justiça” (Gerechtigkeit), ainda que Heidegger a traduza como “justeza” (Fug). Para uma análise detalhada, cf. Y. Hui, op. cit., §8, pp. 69–79.

[27] M. Heidegger, Anmerkungen i-v – Schwarze Hefte, 1942–48, org. Peter Trawny. Frankfurt: Klostermann, 2015, p. 441. No original: “Wenn der Kommunismus in China an die Herrschaft kommen sollte, steht zu vermuten, daß erst auf diesem Wege china für dieTechnik ‘frei’ wird. Was liegt indiesem Vorgang?”.

[28] Mou Tsung-San, Collected Works 21: Phenomenon and Thing-in-Itself. Taipei: Student Books Co., 1975, pp. 20–30.

[29] Zhuangzi (edição bilíngue). Hunan: Hunan People’s Publishing House, 2004, pp. 44–45. Tradução adaptada.

[30] Y. Hui, “For a Philosophy of Technology in China: Geert Lovink Interviews Yuk Hui”, in Parrhesia, n. 27, 2017, pp. 48–63.