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Redes sociais não comerciais

características, heterogeneidade e crise




Este texto é uma introdução às redes sociais não comerciais. Ele está dividido em três seções. Na primeira, apresentamos as principais características destas redes; na segunda, comentamos sobre a heterogeneidade de pensamentos e posições neste campo; na terceira, descrevemos uma crise que acontece atualmente.

Características _______________

Chamamos de rede social não comercial aquela rede social que usa software livre, que é descentralizada, federada e que possibilita que os seus sites (“instâncias”) operem sem fins lucrativos.

Sim, existem redes sociais assim; várias delas; há anos. E mais: elas estão conectadas umas com as outras, formando uma grande rede de redes sociais. Você abre uma conta em uma destas redes e pode se comunicar, estar em contato com pessoas que têm contas em redes diferentes daquela que você usa. E, como os sites da rede social não visam lucro, estas redes não fazem aquelas coisas que as redes comerciais fazem para ganhar dinheiro.

As redes sociais não comerciais também têm os seus probleminhas e dificuldades (de natureza bem diferente, como veremos, daqueles apresentados pelas redes comerciais). Mas, elas não querem fazer você comprar coisas, elas não afetam negativamente a sua saúde mental, elas não desrespeitam a sua privacidade e elas não querem te viciar. Sabendo como elas funcionam – após ler este texto – você poderá decidir se te interessa experimentar esta outra forma de sociabilidade on-line.

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A partir de 2008, começaram a ser criadas na Internet redes sociais com software livre, descentralizadas e federadas:

1. Software livre – o software da rede social tem o código aberto (pode ser examinado por qualquer pessoa interessada - programadores profissionais, amadores e organizações de auditoria -, o que permite que seja de conhecimento público a maneira como a rede social funciona tecnicamente, inclusive os seus algoritmos) e também pode ser modificado e redistribuído por qualquer pessoa - que pode, assim, relançar o software (modificado) como uma nova, diferente rede social). Isto é possível, justamente, porque o software possui uma licença de software livre.

2. Descentralização – a rede social não tem um site único ou central (mas dezenas, centenas ou milhares de sites) e o seu funcionamento geral não é determinado por uma única pessoa, mas, de forma diversa e heterogênea, por muitas pessoas, cada uma delas gerindo, customizando e definindo as regras de conduta – de forma independente – de um site (ou instância) da rede. Isto significa que qualquer pessoa com suficiente conhecimento técnico pode abrir e administrar, de forma independente, um site daquela rede social.

3. Federação – a rede social usa um ou mais protocolos de comunicação que possibilitam que os seus sites ("instâncias") se comuniquem com outros sites da mesma rede social e também com sites de outras redes sociais que usam os mesmos protocolos.

Com o passar dos anos, o conjunto das redes sociais que possuem estas três características foi apelidado de fediverso (em inglês, fediverse – uma fusão das palavras federation (federação) e universe (universo).

Diz-se das redes sociais que estão interconectadas pelo uso dos mesmos protocolos de comunicação que elas “fazem parte” do fediverso.

De forma gerale crucial – além das três características acima, estas redes sociais se distinguem das redes sociais comerciais por não serem empresas, não terem um dono (ou um controle geral) e não possuírem fins lucrativos. Estas redes também não existem enquanto entidades únicas, pois são formadas por várias instâncias (sites) independentes que se comunicam. Cada instância é mantida financeiramente pela pessoa (ou grupo) que a administra, muitas vezes com contribuições voluntárias de pessoas que têm conta na instância. O software da rede não faz coleta de dados pessoais dos participantes ou rastreamentos; não há publicidade; não há algoritmos te mostrando conteúdo impulsionado ou deixando de te mostrar coisas que você quer ver (sabe-se destas coisas pois estas são redes de software livre, e, portanto, código aberto). Assim, pode-se dizer que, se elas apresentam todas as características que mencionamos até aqui, estas são redes sociais não comerciais.

Cada uma das dezenas de redes sociais que “fazem parte” do fediverso foi criada, geralmente, por uma pessoa diferente (mas há exceções). Embora (quase) todas possam se comunicar entre si, elas possuem características e recursos diferentes. Algumas são bem semelhantes neste sentido, enquanto que outras se diferenciam muito, por apresentar não somente características e recursos bem distintos, como também em um número bem maior.

É possível que você se surpreenda por não ter ouvido falar antes em redes sociais não comerciais. Isso ocorre porque estas redes não são empresas e não fazem publicidade – 1) fazer isso seria jogar dinheiro fora, uma vez que elas não geram receita; 2) as pessoas que administram as instâncias muitas vezes não têm interesse em que a instância fique muito povoada (pois isso dificulta a moderação dos posts e aumenta os custos de manutenção e hospedagem da instância, pagos frequentemente apenas por estas pessoas); 3) veículos jornalísticos muitas vezes não têm interesse em divulgar projetos midiáticos não comerciais; 4) redes sociais comerciais costumam proibir (ou não distribuir) posts com links ou menções às redes sociais não comerciais.

O protocolo de comunicação usado pela maioria das redes sociais do fediverso se chama ActivityPub. A maioria das redes do fediverso usa apenas este protocolo de comunicação, enquanto que algumas redes usam mais de um protocolo, ampliando assim a sua capacidade de conexão. (Alguns dos outros protocolos usados por redes sociais não comerciais: Zot, Nomad, Diaspora. Há também protocolos usados por redes descentralizadas de mensagens instantâneas: XMPP, Matrix). Alguns fatos relevantes e interessantes:

Apesar de se constituírem como redes sociais tecnicamente heterogêneas, as redes do fediverso vinham, até junho de 2023, surgindo, evoluindo, se conectando e se relacionando em relativa harmonia, o que era algo realmente surpreendente, considerando as diferenças de visões de seus desenvolvedores (e as divergências que ocorreram no passado). Obs: Já usei/experimentei estas redes sociais (do campo comentado aqui): Akkoma, Firefish, Friendica, Hubzilla, Mastodon, Misskey, Mitra, Nostr, Pixelfed, Pleroma e (streams). E, a partir desta experiência, hoje uso as redes Hubzilla e (streams).


Heterogeneidade _______________

Uma das consequências da liberdade deste sistema de redes sociais é que não existe uma definição técnica (funcional) consensual do fediverso. O termo, que é apenas um apelido, é uma palavra em disputa, e é definido de várias formas diferentes por diferentes atores do fediverso, que tentam assim oferecer uma definição que mais se alinhe com a sua própria visão pessoal do que é o fediverso e/ou com o seu desejo sobre suas futuras configurações (ele está em constante evolução). Nestas diversas definições, encontramos algumas posições defendidas em algumas delas e negadas ou não apoiadas em outras. Eis algumas delas, que, inclusive, se tornaram mais claras nos últimos tempos e que caracterizam a heterogeneidade de pensamentos e posições de pessoas envolvidas com o fediverso de diversas formas:

Em julho de 2023, ocorreu um evento que veio abalar aquela relativa harmonia entre as redes do fediverso, e que, para alguns, o colocou em grande perigo. Este evento foi o anúncio, feito pela Meta, de que criaria uma nova rede social, chamada Threads, e que ela teria, em breve, como um diferencial, a implementação do protocolo ActivityPub, podendo assim se conectar às redes sociais do fediverso. As reações a este anúncio foram rápidas, vigorosas e bem distintas, mas podem ser agrupadas em dois grupos: o daqueles que viram esta iniciativa com preocupação e como uma ameaça existencial, dado o longo histórico de desrespeitos daquela empresa (e que, como administradores de instâncias do fediverso, decidiram bloquear a comunicação com a rede Threads); e o daqueles que gostaram daquela iniciativa — e mesmo a celebraram (o que causou espanto em muitos participantes do fediverso). Esta reação polarizada é outro sinal da heterogeneidade de perspectivas que encontramos no fediverso.

Ora, Threads não é uma rede de software livre (tem o código fechado, ou seja, não tem funcionamento transparente); não oferece (e nem informou que faria isso) descentralização (a possibilidade de qualquer pessoa poder gerir, como quiser, um site (instância) da rede); e, sem descentralização, a perspectiva de federação se dá apenas com o site único de Threads. Mais: já no mês da sua abertura, Threads anunciou que coleta vários dados pessoais (e de atividades na rede) das pessoas de outras redes do fediverso que se conectam a usuários de Threads — ou que permitem que usuários de Threads os sigam ou interajam com o seu “conteúdo”.
Este foi o comunicado feito pela Meta, em julho de 2023: Tradução do comunicado:

Informações De Usuários e Serviços de Terceiros: Nós coletamos informações sobre os Serviços de Terceiros e Usuários de Terceiros que interagem com o Threads. Se você interagir com o Threads por meio de um Serviço de Terceiros (como seguir usuários do Threads, interagir com o conteúdo do Threads ou permitir que usuários do Threads sigam você ou interajam com o seu conteúdo), nós coletamos informações sobre a sua conta e perfil em um Serviço de Terceiros (como o seu nome de usuário, foto do perfil, endereço de IP e o nome do Serviço de Terceiros no qual você está registrado(a)), seu conteúdo (quando você permite que usuários do Threads sigam, curtam, compartilhem ou sejam mencionados em seus posts) e as suas interações (quando você segue, curte, compartilha ou é mencionado(a) em posts do Threads).
Texto original do comunicado:
Information From Third Party Services and Users: We collect information about the Third Party Services and Third Party Users who interact with Threads. If you interact with Threads through a Third Party Service (such as by following Threads users, interacting with Threads content, or by allowing Threads users to follow you or interact with your content), we collect information about your third-party account and profile (such as your username, profile picture, IP address, and the name of the Third Party Service on which you are registered), your content (such as when you allow Threads users to follow, like, reshare, or have mentions in your posts), and your interactions (such as when you follow, like, reshare, or have mentions in Threads posts).
Threads pode dizer que usa o protocolo ActivityPub; e pode, a partir disso, até tentar vender a ideia de que "faz parte" do fediverso. Mas, ao contrário de outras redes do fediverso, Threads não pode dizer que é uma rede social não comercial.

Nota: muitas pessoas (que não moram em países da União Europeia) não estão informadas de que Threads não recebeu autorização da União Europeia para atuar lá, simplesmente porque as suas ações de coleta de dados pessoais dos usuários, mais amplas ainda do que as praticadas por outras redes sociais comerciais daquele grupo, ferem a lei de proteção de dados e privacidade dos cidadãos daquele bloco econômico.


Crise _______________

Mesmo diante deste cenário, temos visto, recentemente, algumas pessoas em posições de influência no fediverso se mostrando favoráveis à chegada e à conexão com Threads, e mesmo ao início do uso de publicidade (!) em redes do fediverso, assim como à interação entre “marcas” (isso mesmo, empresas...) e participantes do fediverso.

Considero tais perspectivas muito divergentes daquilo que o fediverso desenhava, inicialmente, como seu futuro, e penso que tais movimentos podem ser o início de um processo de desintegração de uma imagem pública positiva (e de um determinado funcionamento técnico) que o fediverso vinha, arduamente e com poucos recursos, construindo ao longo dos anos. Muitos acreditam que o objetivo de Threads é inviabilizar o crescimento (e a visibilidade) do fediverso tal como ele vinha se constituindo há 15 anos (isto é, formado por redes de software livre, descentralizadas e federadas). E que, uma vez que o fediverso não pode ser comprado (devido às licenças de software livre das suas redes) ou inteiramente destruído (já que estas redes são resilientes graças à independência da descentralização e do uso de outros protocolos de comunicação, além do ActivityPub), a atual estratégia de "aproximação" e conexão parcial, serviria para estancar o crescimento do fediverso (já que Threads e sua máquina de publicidade se apropriam deste termo), além de faturar alguns milhões minerando os dados de muitas pessoas que fizeram a escolha de se distanciar das redes comerciais e de seus abusos. De todo modo, uma crise no fediverso - diferente de outras, anteriores - pode ser percebida já há alguns meses. Esta crise decorre, justamente, da existência de diferentes visões e preferências que diferentes grupos de pessoas no fediverso têm em relação ao seu funcionamento. Retomando aquelas posições defendidas - a), b), c), d) - e mencionadas acima, reconhecemos, entre outros, quanto à crise, os seguintes grupos de pessoas presentes no fediverso:

e, também...

Vemos, ainda, movimentos como:

///////////////////////////// Diante da recente consolidação deste mosaico de posições, demandas, acontecimentos e observações, creio que é importante reconhecer que:
1) O que se chama de "fediverso" hoje (em 2024) é melhor compreendido e descrito como constituído por redes sociais não comerciais e também por redes sociais comerciais (que já informam mesmo o alcance de algumas de suas ações a participantes de redes não comerciais);
2) Pessoas em comunidades do fediverso começam a se resignar com o atual estado de fragmentação das visões que o conformam - e, como consequência, o próprio uso (e utilidade) do termo "fediverso" começa a ser questionado ou abandonado, uma vez que ele não pode mais representar uma "relativa proximidade" de visões e posições, cuja existência, no passado, parecia talvez ser mais provável do que agora. Além disso, o termo "fediverso" parece ter se tornado uma marca não registrada que as big tech podem usar e explorar à vontade para enganar e capturar pessoas novatas e incautas. Enfim, a ideia de uma "crise" no campo do fediverso não é algo que é falado em todos os lugares - ou, talvez, não seja falado "alto" em todos os lugares. Mas eu considero essencial abordá-la com destaque, pois penso que esta é, inclusive, uma forma de proteger o campo das redes sociais não comerciais. Considere isto: durante 15 anos - de 2008 à 2023 - todas as redes do fediverso eram redes sociais não comerciais. E então, em 2023, quando o número de pessoas no fediverso começou a parecer "atraente" (cerca de 20 milhões de pessoas), e, ameaçava aumentar, redes sociais comerciais como Threads e Maven começaram a se conectar ao fediverso - naturalmente, com o objetivo de obter vantagens comerciais imediatas ou futuras (e fazendo isso sem informar previamente sobre suas ações (Maven) ou sem oferecer a opção de opt out destes esquemas (Threads) para os participantes das redes sociais não comerciais do fediverso). Se alguém não reconhece este tipo de mudança no contexto do fediverso como uma crise, creio que este alguém, considerando as melhores hipóteses, está sendo ingênuo(a) ou está em negação. Pessoalmente, eu nunca considerei e não considero redes comerciais como Threads, Maven e Bluesky como parte do fediverso. Mas, como alguns autores que se dedicam a descrever e discutir o fediverso passaram a fazer isto, eu entendi que era inevitável fazê-lo também, mas, da forma como faço aqui, demarcando linhas divisórias entre as redes sociais comerciais e as redes sociais não comerciais.

[29 maio 2024] Atualizado em: 05 dezembro 2024

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